Wednesday, February 14, 2007

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Ah, se ao te conhecer
Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir.

Chico Buarque

Barco encalhado


Se todos os homens fossem vazios,
Se todas as águas secassem rios,
Se tudo o que existe fosse em vao,
Nao existia amor pela vida
Nao existiria a própria vida,
Nao existia o perdao,

O mundo nao se redimia,
Ao calor da paixao,
Nao seria este dia,
mais um dia, outro dia,
Dos dias de solidao...

...A todos os barcos que encalharam e aos seus bancos de areia...

Saturday, February 03, 2007

O teu jeito…

Esse jeito vazio, esse silêncio,
Lança a ancora dolorosa do pesadelo,
Sendo eu e se sou eu o teu tormento,
Serei o errante eterno, um flagelo…

Como as bombas que caíram no meu leito,
Não caias mais, não com indiferença,
Sou ingénuo, sou em vão, sou carne fresca,
Álibi padrão da verosimilhança…

Ao contrário do que por nós foi inato,
Os caminhos ditam a contrariedade,
Eu não segui feliz sem ser lamento,
E tu esqueceste-te da saudade,

Neste jeito complexo de desabafo,
Limpo o céu, procuro a esfinge do pensamento
Deixo-te seguir o teu caminho, apenas deixo,
E liberto em versos, o calor do desalento…

E em vão esse teu jeito não modifica,
A vontade e o teu gosto pelo frio,
Em contínua mutação ele petrifica,
O crisântemo lindo que pariu…


...Para alguém que se esqueceu de mim e que tem as suas razões!
Contrariedades

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;

Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco entre nevadas roupas!Tão lívida!
O doutor deixou-a. Mortifica.Lidando sempre!
E deve a conta à botica!
Mal ganha para sopas...O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A ImprensaVale um desdém solene.
Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos,
Os meus alexandrinos...E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e, todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas?
Impressas em volume?
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

Cesário Verde